segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Na calçada



Encontro o escritor na calçada, à noite. Passeia com a cadelinha, se não é ela que o leva a passeio, com um movimento imperativo na causa: "Pára de trabalhar, rapaz!" Vestido informalmente, nada o distingue de um homem comum. O homem comum não responderia o que ele me responde, se lhe pergunto a que hora gosta de escrever: "Não tenho hora. Eu escrevo sempre. Às vezes interrompo a escrita para fazer alguma coisa, mas volto logo a escrever."

Nenhum escritor comum, igualmente, responderia isso. Os escritores se queixam de que não podem, não conseguem escrever. A vida cotidiana furta-lhes a concentração, e, quando se concentram, o doloroso ofício das palavras expõe-lhes todo o arsenal de cilícios. O escritor desejaria escrever em horas insólitas, em um tempo fora do tempo, e nas horas estatuárias ou possíveis quer fugir a essa obrigação: O mar está chamando, a beleza, o amor, a simples distração está chamando...

"Ah, se eu fosse rico!", lamenta-se um; "isolava-me, assim daria minha medida." "Tão bom se eu fosse pobre", cisma aquele; "teria bastante solidão, toda a minha riqueza seria escrever." Com isto se justificam ou se iludem. Este, porém, não é rico nem pobre; tem obrigação monótona e externa, que empece tantos talentos; cumpre-a como se cumprem atos de toalete, escrupulosamente, no plano periférico; no mais íntimo, pensa no que vai escrever; escreve em branco. Não se entrega à circunstância nem à condição civil.

"Meus três livros (conta-me) foram escritos em sete meses cada um, mais quatro meses para polimento, embora o tamanho diferente deles. Foram feitos afinal em um ano, descontando-se um mês para respiração. Um deles, escrevi-o das 9 da manhã às 2 da madrugada, diariamente. Durante esse prazo, pedia que me servissem comida de pé."

Diz isso tão naturalmente que não descubro gabolice na confissão; sente-se a felicidade, não de dizer, mas de ser e fazer assim. A angústia não existe então para ele?, indago. Existe, sim. Também duvida do que escreve, depois de entregar os originais à impressão. Fica imaginando que não escreveu o que sabia ou podia, mas ao se ler impresso costuma aprovar-se, por que negar a verdade? E sonda maliciosamente a opinião do próximo, detecta reações, embora não venham a influir em nada na sua literatura. Dá-se o luxo de forçar o público a uma definição, que contudo não o atinge, em seu aquário. Atordoa, confunde, irrita, alicia, conquista. Sem fazer concessão! Aos que lhe pedem prefácio - mapa da mina, alertados de suas superpostas ou subterrâneas intenções e encantações, costuma responder: "O padeiro faz prefácio para o pão?" O público é que vem a ele, vencido, não raro contra o parecer de letrados. Há indivíduos simples que o descobrem em sua complexidade e o amam, sem luta.

"O tempo (continua) é que é meu inimigo, e eu fujo à sua dimensão. Se leio jornal, seleciono as notícias. As de atualidade mais crítica, transporto-as para dois milênios antes, ou mais. Assim os Aníbais, os Faraós assumem o lugar de X, de Y, de Z, e eu consigo isolar-me para captar o mistério do homem, no universo mágico. Porque, se os acontecimentos não me interessam, a realidade, que é mágica, me interessa muito. Este simples encontro entre nós é cheio de significação, e não foi por acaso. Viver - mas você já sabe disso - é muito perigoso..."

A cadelinha do escritor, sem impaciência, treinada para acompanhar as vigílias criativas ou meditativas, acomoda-se na calçada, enquanto ele conversa, ao jeito antigo do interior brasileiro, como se deve conversar, à margem de interesse imediato. E ela também é um dado do seu universo maravihoso, que os passantes não percebem na rua tranqüila, na plácida noite de bairro. Assim como, banhados de sorrateira claridade, não percebem, não se dão ao trabalho de perceber, no alto, na lua - quem sabe se estranha rosa?


Carlos Drummond de Andrade, em Cadeira de Balanço.

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