segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Carlos


Carlos, cansado, pegou o violão e subiu até o terraço de sua casa. Galgando as escadas, chamava o seu gato para que o acompanhasse degraus acima. O bichano de quando em quando relutava, com medo daquele novo caminho, jamais trilhado. Era um felino que tinha acabado de sair da infância, sem muitas experiências, por assim dizer.
Chegando ao lugar mais alto, ao topo da casa, Carlos procurou um canto, sentou-se e tocou alguns acordes. O gato agora se espojava alegremente no chão, sem medo nenhum. O nosso violonista acendeu um cigarro, tragou a primeira fumaça e relaxou, liberando um pouco da tensão de seu corpo e de sua alma. Cantou alguma canção de Charles Trenet. Para dizer a verdade, “Douce France” era uma de suas preferidas e uma das poucas cuja harmonia e letra lembrava razoavelmente. Cantou também duas de outro artista francês: “Ça ira” e “Persevère”. Passou às canções brasileiras, entoando uma que falava sobre a necessidade de saber viver.
Havia um pouco de tristeza nos pensamentos de Carlos. As outras pessoas estavam por aí, conquistando seus bens, enquanto ele, nos aspectos materiais da vida, não havia feito quase progresso nenhum. Sentia que a vida estava parada ou ele parado na vida. Mas, na verdade, o sentimento era relativamente ilusório, porque, no fundo, ele havia feito uma escolha, renunciando temporariamente às materialidades para conquistar o mundo da cultura, do conhecimento, da inteligência e mergulhar no espírito da sabedoria. Ele queria e buscava o mundo espiritual, deixando para segundo, talvez terceiro lugar, o reino da matéria, mas tinha chegado o momento em que a matéria clamava e exigia atenção. Carlos se angustiava. Fumou mais um cigarro.
Levantou-se, viu a rodovia, que se estendia diante de seus olhos. Lá andavam gracinhas muito belas, de olhos coloridos e vivazes, saltitantes. Pessoas iam, pessoas vinham, carros subiam e desciam os morros e o sol dourava a grama verde que deitava sobre os morros. A lâmpada do mundo também coloria de luz as paredes lisas dos prédios distantes e o espetáculo da tarde se pintava perante os olhos dele.
De duas em duas, garotas e mulheres passavam próximas, indo à caminhada. Olhando a mão esquerda delas, por questão de respeito e impecabilidade, deixava de contemplá-las mais detidamente se encontrava uma aliança reluzente.
As pessoas modernas não se importam, elas se esquecem; mesmo dentro das famílias há desinteresses mútuos; os desamores se desbeijam com as inconsciências tranquilas.
Carlos sentou-se, acendeu mais um cigarro. Quando se levantou o dia estava quase apagado. Olhou as luzes dos postes, que se acendiam amarelas como num quadro de Afremov. A paisagem do bairro estava pontilhada de luz. Bem longe, no meio da rodovia, um semáforo piscava sempre a lâmpada do meio e nunca se resolvia para o verde ou para o vermelho. Menos longe, um homem passou correndo no seu cooper provavelmente diário. As pessoas progrediam no seu caminho. Carlos, parado, viu que um poste lutava para brilhar. Sua luz, muito tênue, era muito menos que a luz das outras lâmpadas, que estavam em todo o seu fulgor, na plenitude da força. Poucos segundos depois, porém, ela se esforçou e se acendeu como devia, também somando na luminescência do quarteirão.

Carlos olhou em volta, seu gato branco havia desaparecido como a alma do pai fantasma de Hamlet. Estava sozinho. Pegou o violão, mudo como um maestro pensativo, taciturno como um Beethoven já surdo, e desceu de novo para dentro, talvez sonhando alguma Ode à Alegria no fundo da alma.

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