sábado, 29 de novembro de 2014

Uma volta de bicicleta

Uns amigos têm carro; outros não têm nada. Carlos tem bicicleta. Quando ele está com a mente abarrotada de sons musicais que se misturam com pinturas e fotografias – quando, por exemplo, o “Credo Niceno” começa a se misturar com o retrato da “Monalisa”, ou quando Charles Trenet canta “Douce France” junto de uma loura totalmente nua e ensolarada, me perdoem a indiscrição – quando isso acontece ou mil outras combinações inusitadas, de modo que um desafogo na tranquilidade de um passeio se faz necessário, então ele pega a sua bike e vai guiando por aí, pedalando um pouco aleatoriamente, em busca apenas de um refresco.
Sábado passado, por exemplo, saiu sem saber para onde e logo se decidiu a descer até a pista que liga seu bairro à BR, onde costumam caminhar gracinhas com roupas muito coladas, cabelos com rabo-de-cavalo, balançando a cada passo longo e apressado. Desceu para vê-las, não para cobiçá-las. É que a beleza faz um bem danado para a gente, e não nego que há muito prazer para quem observa. Mas a contemplação apreciativa sem o desejo de posse carnal do objeto belo não é cobiça, aos olhos do Carlos, pelo menos. De modo que, de qualquer jeito, ele foi apenas aprazer-se pela vista.
Foi, mas, lembro ao leitor, era sábado, e nesse dia, parece, as gracinhas não saem para a caminhada. Talvez, nesse momento, elas estivessem se preparando para saídas diversas, como aniversários, casamentos, igrejas, talvez estivessem mesmo começando um pouco antecipadamente os “embalos de sábado à noite”, como diziam os antigos. Ele, como não é de farra e como seu professor de filosofia tinha cancelado a aula (sim, é no sábado à noite), decidiu tocar para a casa de um amigo.

Ele não estava. Tinha acabado de sair com a esposa. “Tem dez minutos”, disse alguém. Foram, talvez, visitar algum restaurante diferente ou conhecer algum lugar novo. O fato é que ele, sem amizade e sem amor, rodou sem norte por um tempo e foi parar em frente a uma igreja, onde a missa acontecia. Parou e ficou escutando o padre sermonear palavras muito edificantes. Enquanto ouvia, olhava a grande escultura de Cristo Crucificado que estava logo na entrada e se embrenhava em reflexões muito graves e sisudas. Notou o seguinte fato: uma escultura comunica algo mais que uma pintura, pelo simples fato de ter uma dimensão a mais, participando assim mais inteiramente da realidade e imitando com mais proximidade o ser real de que surgiu. Ele intuiu também que a imagem de Cristo Crucificado o colocava espiritualmente no momento exato da crucificação, sobre o Calvário. Ele quase chegou a ver com os olhos da cara Maria e João aos pés da cruz, viu apenas com os olhos da imaginação. Celebrada a Comunhão, alguns fiéis vieram e tocaram as chagas de Cristo na escultura, fizeram reverências, sinal da cruz. A liturgia terminou, Carlos deu força nos pedais e tocou para casa, refletindo coisas muito sérias. A mente estava meio triste, mas sossegada. E dessa maneira a volta de bicicleta teve um fim circunspecto e pensativo.

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