Uns amigos têm carro; outros
não têm nada. Carlos tem bicicleta. Quando ele está com a mente abarrotada de
sons musicais que se misturam com pinturas e fotografias – quando, por exemplo,
o “Credo Niceno” começa a se misturar com o retrato da “Monalisa”, ou quando
Charles Trenet canta “Douce France” junto de uma loura totalmente nua e
ensolarada, me perdoem a indiscrição – quando isso acontece ou mil outras
combinações inusitadas, de modo que um desafogo na tranquilidade de um passeio
se faz necessário, então ele pega a sua bike
e vai guiando por aí, pedalando um pouco aleatoriamente, em busca apenas de um
refresco.
Sábado passado, por exemplo,
saiu sem saber para onde e logo se decidiu a descer até a pista que liga seu
bairro à BR, onde costumam caminhar gracinhas com roupas muito coladas, cabelos
com rabo-de-cavalo, balançando a cada passo longo e apressado. Desceu para
vê-las, não para cobiçá-las. É que a beleza faz um bem danado para a gente, e
não nego que há muito prazer para quem observa. Mas a contemplação apreciativa
sem o desejo de posse carnal do objeto belo não é cobiça, aos olhos do Carlos,
pelo menos. De modo que, de qualquer jeito, ele foi apenas aprazer-se pela vista.
Foi, mas, lembro ao leitor,
era sábado, e nesse dia, parece, as gracinhas não saem para a caminhada.
Talvez, nesse momento, elas estivessem se preparando para saídas diversas, como
aniversários, casamentos, igrejas, talvez estivessem mesmo começando um pouco
antecipadamente os “embalos de sábado à noite”, como diziam os antigos. Ele,
como não é de farra e como seu professor de filosofia tinha cancelado a aula
(sim, é no sábado à noite), decidiu tocar para a casa de um amigo.
Ele não estava. Tinha
acabado de sair com a esposa. “Tem dez minutos”, disse alguém. Foram, talvez,
visitar algum restaurante diferente ou conhecer algum lugar novo. O fato é que
ele, sem amizade e sem amor, rodou sem norte por um tempo e foi parar em frente
a uma igreja, onde a missa acontecia. Parou e ficou escutando o padre sermonear
palavras muito edificantes. Enquanto ouvia, olhava a grande escultura de Cristo
Crucificado que estava logo na entrada e se embrenhava em reflexões muito
graves e sisudas. Notou o seguinte fato: uma escultura comunica algo mais que
uma pintura, pelo simples fato de ter uma dimensão a mais, participando assim
mais inteiramente da realidade e imitando com mais proximidade o ser real de
que surgiu. Ele intuiu também que a imagem de Cristo Crucificado o colocava
espiritualmente no momento exato da crucificação, sobre o Calvário. Ele quase
chegou a ver com os olhos da cara Maria e João aos pés da cruz, viu apenas com
os olhos da imaginação. Celebrada a Comunhão, alguns fiéis vieram e tocaram as
chagas de Cristo na escultura, fizeram reverências, sinal da cruz. A liturgia
terminou, Carlos deu força nos pedais e tocou para casa, refletindo coisas
muito sérias. A mente estava meio triste, mas sossegada. E dessa maneira a
volta de bicicleta teve um fim circunspecto e pensativo.
Um conto bem elegante. Parabéns.
ResponderExcluirObrigado, arilud.
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