sexta-feira, 27 de maio de 2016

A palavra, uma organizadora da alma

Na postagem passada eu falei da palavra como guia para a selva escura, ou seja, como um instrumento para lançar luz sobre ideias e pensamentos que permanecem no escuro, na confusão e na indeterminação da mente, quando a palavra não é usada para iluminá-los. Seguindo a mesma linha, quero falar agora sobre a palavra como organizadora da alma. Alguns podem não se sentir muito à vontade com esse termo “alma”, porque vários obstáculos, várias dúvidas, foram postos no pensamento das pessoas pela cultura materialista moderna. Caso haja essa dificuldade, bastará encarar o termo “alma” como “mente” ou “inteligência”.
O que seria organizar a alma através da palavra? Seria dar distinção a cada ideia, desfazendo confusões, misturas, sobreposições, dando nitidez a cada pensamento, bom delineamento, de modo a torná-lo mais visualizável e manuseável, de modo a poder ser dito e compartilhado com outros. Distinguir as ideias, clarificá-las, colocar as semelhantes próximas umas às outras, percebendo ligações importantes. Isso é organizar a alma.
Ideias sobrepostas, misturadas, mal delineadas geram confusão, desorientação e desconforto. A palavra vem como um instrumento para ordená-las, classificando-as e distinguindo-as.
Pessoas que têm uma quantidade muito exígua de ideias em sua mente podem não sentir esse desconforto de que estou falando, porque não se esforçaram para absorver ideias novas, pensamentos diversos de fontes heterogêneas, como as provenientes de outras culturas. Essas pessoas ficam circulando naquele estreito circuito conhecido, já tantas vezes trilhado, absorvendo, uma vez ou outra, alguma pequena ideia nova que não causa muito impacto no conjunto.
Por outro lado, aqueles que estão se dedicando intensamente aos estudos, procurando conhecimento em todas as fontes, ainda nas mais distantes, dia após dia, contínua, incansável e afanosamente, terão de enfrentar o desconforto de muitas ideias misturadas e sobrepostas e precisarão de maneira ininterrupta de usar a palavra como meio de organizar os seus pensamentos, classificando-os e ordenando-os.

Quem, por exemplo, decide ir além das fronteiras ocidentais da cultura e absorver as estruturas de pensamento orientais ou de outros grupos estranhos a nós, como os do extremo norte da Europa, com suas músicas e baladas medievais, certamente sentirá o impacto das grandes diferenças e visões de mundo, absorvendo símbolos novos que, por serem vistos por alguém alheio ao sistema cultural completo, poderão ser erroneamente interpretados ou pelo menos mal compreendidos pela imprecisão da visão. Isso gerará a confusão de que falei acima e exigirá o esforço ordenador, clarificador e classificador feito através da palavra. Por isso, escrever sempre num caderno ou expor oralmente a outros as novas ideias absorvidas é muito proveitoso para o estudante. 

quarta-feira, 25 de maio de 2016

A palavra, um guia para a selva escura

Expor cada pensamento num texto organizado é ir caminhando pelos recantos obscuros da alma e lançando luz neles, de modo a poder enxergar-se melhor, ampliando a autoconsciência. Quando não dizemos para nós mesmos o que vimos, os pensamentos e imagens que passaram pela nossa mente ficam depositados em cantos sombrios, podendo ser às vezes despertados de modo acidental, segundo às circunstâncias, mostrando-se não raro com a sua face deformada, como bêbados que se levantam de um sono para dormir novamente. Entretanto, quando usamos as palavras para dizer e investigar o nosso próprio mundo interior, este vai se tornando mais luminoso, organizado e conhecido, proporcionando que utilizemos cada idéia clara quando dela tivermos precisão e que vejamos a nós mesmos em plena luz do dia. A palavra é, pois, um instrumento de autoconhecimento e autoinvestigação, um guia para percorrermos as sendas escuras da alma, um fio condutor para atravessarmos a floresta penumbrosa. Por isso, é muitíssimo importante desenvolver a linguagem pessoal, aprendendo a se expressar com os clássicos da Literatura, uma vez que quem dispõe apenas da linguagem do meio imediato e da mídia só poderá percorrer os mesmos circuitos e estará preso às mesmas estradas já conhecidas, que, por não mostrarem a floresta como é, iludem o viajante sobre si mesmo.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Conhecimento humano e esquemas mentais

Na última postagem, eu fiz uma resenha breve sobre o livro "Filosofias da afirmação e da negação" do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos. Seguindo na mesma linha, quero desenvolver um pouco um tema contido no livro. É o seguinte:

O conhecimento humano é relativo ao ser humano, pois só podemos conhecer aquilo que é proporcionado aos nossos esquemas mentais, como os sons que estão dentro da nossa capacidade auditiva e as imagens que estão no espectro de vibrações captáveis pelos nossos olhos. Os objetos que estão fora do campo de apreensão dos nossos esquemas não podem ser conhecidos diretamente pelos sentidos.
Se em sentido amplo é assim, em sentido restrito também parece ser, isto é, se no que diz respeito às capacidades humanas totais de conhecer nós conhecemos apenas o que é proporcionado aos esquemas humanos, no campo do conhecimento individual deve também ser assim, pois uma criança, por exemplo, não é capaz de captar certas nuances de significado que um adulto bem alfabetizado capta. A criança ainda não tem os esquemas que proporcionariam a percepção, de modo que essas nuances não são percebidas por ela. Assim, pois, no que diz respeito aos esquemas adquiridos pela educação, a regra também é válida.

Nós mesmos, quando estudamos um assunto, vamos compreendendo aos poucos o tema e até mesmo os conteúdos de um livro de um grande autor. Não captamos tudo de uma vez, porque ainda não temos os esquemas necessários para isso, os quais serão adquiridos aos poucos após cada nova leitura, até que elementos outrora ocultos se revelem gradativamente a nós. Inversamente, quem já possuísse os esquemas mentais necessários, adquiridos através de outras leituras e outras experiências, apreenderia num relance todo o conteúdo. Por isso, quanto mais um estudioso desenvolve a sua linguagem pessoal e adquire conhecimento, mais facilmente ele compreenderá o que estuda, tendo dificuldades apenas com aqueles temas mais novos, para os quais ainda tem pouco aparato cognitivo.

Filosofias da Afirmação e da Negação de Mário Ferreira dos Santos: uma breve resenha

No livro “Filosofias da afirmação e da negação”, o Mário Ferreira dos Santos passa em revista algumas importantes correntes filosóficas, como o ceticismo, o relativismo, o idealismo, a fenomenologia, os pensamentos de Platão e Aristóteles, o de Kant, buscando sempre destacar o que há de positivo e o que há de negativo nelas, pois não há nenhuma linha de pensamento que não tenha algo de positivo para apresentar, uma vez que mesmo as filosofias mais negativistas se apoiam na positividade para argumentar e para existir, uma vez que, se elas existem, alguma coisa há e não um nada absoluto.
A obra do Mário se chama “Filosofias da afirmação e da negação” porque há filosofias que se firmam na positividade da afirmação, enquanto outras, como o ceticismo e o relativismo, se fundam sobre a negatividade e tendem à negação total. Entretanto, essas filosofias negativistas, que buscam o nada, essas filosofias niilistas, se contradizem fatalmente, pois dependem sempre de algo positivo, afirmativo, porque a afirmação precede à negação, o ser precede ao nada. A negação nega uma afirmação; não houvesse, portanto, afirmações, positividades, não haveria negações. Para o Mário, as filosofias afirmativas precisam ser preferidas, enquanto as negativistas devem ser rejeitadas, posto que seus frutos maus já são mais do que conhecidos e só levarão a mais barbárie e a uma degeneração ainda maior. O niilismo “profetizado” por Nietzsche avassalou o mundo no século XX, até onde o Mário pôde ver, e prometia mais destruições ainda, que nós estamos vendo hoje. Os corações se obscureceram e somente um retorno ao que é firme e positivo no pensamento humano poderia resolver o problema. Por isso, seria importante uma filosofia que absorvesse todos os pontos positivos de todas as filosofias durante a História, rejeitando o que elas possam ter de negativista.
Em sua obra, composta na forma de diálogos, o Mário Ferreira dos Santos refuta o ficcionalismo, que afirma que todas as convicções humanas e toda a realidade que conhecemos são ficções criadas por nós mesmos. Ele mostra que, embora as imagens da imaginação e os esquemas mentais humanos possam, de certo modo, ser encarados como uma ficção, essa ficção tem algo em comum com uma outra suposta ficção, que é o mundo exterior, de modo que nós podemos dizer que conhecemos esse mundo pelo menos em parte. O Mário está argumentando em hipótese, ele não está admitindo de fato que o mundo exterior seja uma ficção, salvo se o pusermos perante a Realidade Suprema, isto é, o Ser Supremo, que é o único que tem toda a Realidade em si. O Mário está apenas tomando o argumento de um ficcionalista e o passando por uma crítica implacável. O ficcionalismo não subsiste, tanto mais que ele não se encara como uma simples ficção, mas pretende que a sua afirmação de que tudo seja uma ficção corresponda à verdade, sendo o seu propugnador um homem que conhece o mundo real. Mas mesmo no ficcionalismo poderíamos encontrar algo de positivo e útil, como a dedução de que os nossos conteúdos mentais e mesmo o mundo exterior não têm sua razão em si mesmos, mas radicam no Ser Supremo, de modo que aqueles seriam de certo modo ficções, enquanto este é a Realidade.
O Mário faz o mesmo com o ceticismo e o relativismo, que, apesar de terem aspectos positivos, também não se sustentam. O relativismo, por exemplo, está certo ao afirmar que o conhecimento humano é relativo ao ser humano, ou seja, é proporcionado ao que o ser humano é capaz de conhecer, não sendo possível, portanto, que conheçamos aquelas coisas que não são proporcionadas ao nosso aparelho cognoscente. Por exemplo, há certas ondas sonoras que podemos ouvir, mas há outras, que estão acima ou abaixo de certa frequência, fora do nosso campo de captação, que não podemos captar, não nos sendo possível conhecê-las através da experiência auditiva, embora existam. Do mesmo modo com certos elementos visuais, que escapem às vibrações que nossos olhos podem perceber. Isso está certo. O erro é imaginar que nosso conhecimento jamais será seguro apenas porque não conhecemos tudo, pois o que conhecemos, conhecemos, e é objetivamente verdadeiro.
O idealismo não escapa da crítica do gigante brasileiro, assim como a fenomenologia, que é um modo pré-teorético de pensar. É excelente para descrever os fenômenos, mas, por um lado, numa de suas correntes, peca por dizer que não conhecemos os objetos em si, mas apenas as suas aparências fenomênicas, e, por outro, noutra vertente, erra ao desprezar a razão e afirmar que captamos imediatamente, pelos sentidos, a essência dos objetos, dispensando assim o trabalho da razão, a investigação, a análise, a abstração, sob a ideia de que a razão só cria falsidades. Para o Mário, nós captamos a aparência fenomênica dos objetos, mas somos capazes de penetrar em seu ser através do pensamento. A fenomenologia erra, de um lado, por negar o conhecimento real dos objetos e, de outro, por negar a validade da razão.
O Mário também aborda a diferença gnosiológica do pensamento de Platão e de Aristóteles, harmonizando-os. Aristóteles ensinava que o conhecimento se dá a partir dos sentidos, numa atividade em que o sujeito cognoscente apreende as imagens, os fantasmas, dos objetos e, através de abstrações de primeiro, segundo e terceiro graus, elabora conceitos e chega ao conhecimento de fato. Platão, por seu turno, falava das ideias que pré-existem ao ato de conhecer, ideias que estão fundadas no Ser e que são “anteriores” ao mundo material. Essas ideias, formas ou esquemas estão também esquecidas na mente humana, de modo que todo o ato de conhecer é um lembrar-se, um recordar; são ideias que, na linguagem poética de Platão, estão dormindo na mente humana. Se não fosse assim, não seria possível chegar ao conhecimento de nada, uma vez que para haver o conhecimento é necessário que haja uma semelhança entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível. Se eles fossem absolutamente diferentes não haveria nenhum contato e não poderia haver assimilação, nenhuma conformação interior, não material, do sujeito com o objeto. Assim, existem, na mente humana, esquemas “a priori”, anteriores ao conhecimento. Se a cera, no pensamento aristotélico, é aquela que recebe as impressões de objetos exteriores, é preciso que essa cera já tenha a capacidade de receber essas impressões e ser modelada por elas; precisa, em suma, de ter uma estrutura capaz.
É verdade que Platão não usa o termo “a priori”, pois quem o utilizou foi Kant, mas eu o utilizei acima como um sinônimo de esquemas mentais pré-existentes necessários ao ato de conhecimento, sem os quais este seria impossível.  Usar esse termo não quer dizer que estou endossando o pensamento de que as ideias, as formas, os esquemas estão só na nossa mente e não no mundo real nem no Ser Supremo, pois elas estão na mente, na realidade e no Ser.

Desse modo, o Mário faz a união dos pensamentos de Platão e de Aristóteles, que deram espaço para abstrações indevidas, em que uns poderiam negar a existência das ideias “a priori” e outros o conhecimento a partir dos sentidos. Os dois lados estão certos, pois os dados dos sentidos despertam as ideias pré-existentes, fazendo-nos lembrar do que estava esquecido em nós. Um ponto importante, porém, é que o Mário não diz que ele foi o elaborador dessa união de pensamentos, nem que qualquer um de nós deveria criar uma filosofia que o fizesse, pois, antes mesmo de Platão e Aristóteles, Pitágoras já possuía um pensamento no qual essas duas realidades apareciam harmonizadas. Basta, portanto, retornarmos a esse pensamento.

sábado, 7 de maio de 2016

Evolução de uma civilização

"Segundo Huizinga, no curso da evolução ascendente de uma civilização, a representação artística através das imagens (pintura e escultura) se aperfeiçoa primeiro; em seguida vem a vez da que acontece através dos conceitos (Literatura). E no domínio das letras, é a poesia, isto é, a expressão ritmada do pensamento que se recita em voz alta, que constituiria o estágio primitivo. Quanto à leitura pelos olhos apenas, sem a participação da voz, tal qual nós praticamos em nossos dias, ela é uma invenção do século XV. É uma operação mental pura extremamente complexa, que vem coroar uma série de aprendizagens (leitura em voz alta, escrita), fazendo, portanto, intervir os circuitos cerebrais que controlam a visão, evidentemente, mas também a audição e ainda a motricidade da mão e da boca. Além do mais, a dislexia, distúrbio de leitura que confunde as letras, inverte as sílabas, etc., é tratada por vezes com sucesso pela reeducação da função da audição-fonação em musicoterapia ou somente pela lateralização da audição dominante à direita. Certamente, esses casos isolados são sempre discutíveis, tanto mais que a dislexia pode ser curada espontaneamente em aproximadamente 10% dos casos." 

Do livro Musique, intelligence et personnalité do neurocientista Dr. Mingh Dung Nghiem.

Tradução de Jelcimar Luiz Rouver Júnior

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Para que estudar Português?

Quem não estuda Português tem mais tempo livre para se divertir, para conversar com os amigos, para conhecer novas pessoas, para assistir televisão, ir ao cinema, ouvir músicas ou simplesmente passear e viajar. Para essa pessoa não será necessário se afadigar com muitas leituras, se esforçar para absorver a linguagem difícil dos clássicos, para pegar o sentido das suas metáforas e figuras de linguagem, para compreender as regras gramaticais. Quem não estuda Português não precisa queimar os neurônios para entrar no mundo estranho dos grandes autores, que falam de mitos desconhecidos e experiências muito sutis, fazendo referências difíceis de captar.

Por outro lado, quem estuda o idioma pátrio, aprende a compreender melhor o que as pessoas próximas e distantes dizem, as notícias que circulam na sociedade, os livros que lê. Essa pessoa desenvolve a linguagem pessoal e se expressa com beleza e vivacidade, sem cometer erros de fala e equívocos que atrapalham a comunicação. Ela pode falar em público a pobres e a ricos, ao povo e à elite, sem medo de passar vergonha, pode participar de debates importantes e decidir os rumos da sociedade com sua contribuição; ela adquire maior poder de influenciar as pessoas e novos meios de ação, mais capacidade de se orientar na vida e de comunicar ideias, mais harmonia e estabilidade psíquica e uma personalidade mais desenvolvida. Quem estuda Português lê livros com referências a mitos e histórias insólitas e as compreende, estando mais consciente do que se passa. Quem estuda não se torna presa fácil de indivíduos mal intencionados, que querem manipulá-lo para que faça suas vontades. Quem estuda a Língua Portuguesa se torna capaz de contar para si mesmo a própria história de vida de maneira mais clara, organizada e precisa, se tornando mais autoconsciente, pois o idioma é um instrumento de conhecimento próprio. Por isso, para quem tem dúvidas sobre estudar ou não, a melhor escolha é o estudo.

Este texto é endereçado especialmente a alunos do Ensino Fundamental e Médio que não vêem motivos para estudar Português.